segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Autobiografia do Alheio

Ainda me lembro de quando aquele garoto era só uma criança. Uma criança que como qualquer outra, tinha amigos, brincava. Não era como aquelas que passavam por dificuldades desde cedo e terminavam como grandes martyrs da literatura ou da ciência. Às vezes me pergunto, será que alguém cuja excentricidade tenha sido seu marco de personalidade, teve uma infância completamente normal? Mas esse garoto era normal e teve essa fase marcada pela felicidade que parece que sempre provém de uma alienação mórbida, imparcial e eterna. Bom, eterna pelo menos enquanto dura a criancice.
A maior dificuldade sempre vem aos 14. "Idade complicada", segundo um velho senhor que encontrei na feira semana passada. Dizia ele que nessa idade todos os seus filhos encontraram dificuldades filosóficas. É uma idade em que se estabelece a dúvida entre achar que é diferente ou se adaptar às regras de vestuário que seus amigos lhe impõem.  Adotar um estilo alternativo tá bem na moda, tribos como punks, metaleiros ou emos são pessoas diferentes da sociedade, apesar de serem bem iguais entre si. E aquele garoto também achou que era uma ótima maneira de deixar sua marca. E que marca! Unhas pintadas de preto e cabelo na cara. Era como se carimbasse sua vaidade no rosto de cada maloqueiro que o encarava na rua e dizia: "sua bixinha".
A atenção que recebia era tanta. Eram tantos insultos que creio que por puro darwinismo ele começou a gostar de ser o contrário. Sim, isso mesmo, seu corpo e sua mente estavam se adaptando, criando mais uma dessas várias formas de pseudo humanos que vemos todos os dias. Pobres adolescentes, tão sorridentes, brincam e brigam o tempo todo. Parecem racionais mas a cada palavra que vem por impulso em suas mentes e num segundo é dita, sem reflexão, faz de suas consciências recipientes vazios. Gente jovem é vazia por dentro. E o rapaz o qual tenho falado queria perceber isso, mas quando se percebe algo tão, tão... Me faltam palavras pra dizer, mas perceber aquilo pra ele seria um tiro na têmpora.
Mas o que tinha de tão ruim em perceber as coisas? Ainda não tinha nada. Mas algo dentro dele gritava por explicações. Queria explicar pra si mesmo o motivo de uma mentalidade (se é que isso é possível). O que ele queria... Queria explicar um ser humano normal como se fazem com animais selvagens cuja vida é mostrada em um documentário do NatGeo. Será que ser normal era tão desinteressante assim? Às vezes acho que supervalorizamos "gênios" em suas excentricidades. E esse carinha aos 14 anos achava a mesma coisa.
A vida pra ele se tornou um relatório. Descrever era algo necessário. "Há mais ciência e história em pegar um ônibus lotado que em todo o acervo de uma biblioteca universitária" dizia ele. E até que ele ficou bom nisso. Em pouco tempo conseguia deduzir mais de um mendigo com uma conversa de botequim do que conseguira deduzir sobre Hitler em todas suas leituras sobre a guerra fria. Estava provando a si mesmo que estava certo, não importava o quanto os intelectuais dissessem o contrário ou não dessem a mínima pra isso.
E dentro de um útero de observações não-sentimentais aquele garoto cresceu. Teve várias namoradas cujo relacionamento durava pouco tempo, mas depois de um tempo ele nem se importou mais. Não tinha um amor, mas ainda tinha sua liberdade. Liberdade de fazer de tudo e de todos um objeto de pesquisa. Não se julgava um intelectual. Se julgava melhor que um. Era uma pessoa que vivia suas próprias filosofias, não estava estagnado, não era um repetidor de discurso como seus professores de faculdade. Ser retrógrado em suas opiniões era algo insuportável.
Mas o mundo não é tão simples. "Querer não é poder" como dizem os parentes desde os primórdios da humanidade. Na verdade, acredito que o mundo seja um conflito de quereres. Muitas pessoas querendo muitas coisas, quereres resultando em ações, e ações resultando em alterações de coisas. E se o mundo é um lugar tão cheio de pessoas e de quereres, alguns deles hão de se perder no meio de outros. E foi o que aconteceu, pois do outro lado da sala 15 havia uma garota que o quis. E como o quis! Quis tanto que ele sucumbiu, e por dois anos esquecera de fazer o bendito relatório mental que fazia sobre todos os seres humanos. Mas porque não um relatório sobre ela? Afinal, ela era ou não humana? Acho que tanto pra ele quanto pra qualquer outro indivíduo normal, cônjuges são como divindades, anjos que nos salvam de fazer da vida uma ciência. Afinal de contas viver é uma experiência inexplicável (será?).
E os anos passaram. Anos em que seu coração estava cheio e sua mente vazia. Teve dois filhos. E cada dia trabalhando na receita federal, por mais cansativo que fosse, era recompensado no final deste com uma cervejada com seus amigos e um jantar com a sua esposa. A lógica havia acabado. Tudo havia se tornado um fluxo de neurotransmissores que deram a ele uma felicidade constante, duradoura e completamente irracional.
Mas o que ele queria mais? Ser feliz, ou ser aquele personagem cuja capacidade de observação era afiada como uma navalha? Não dava pra ser os dois. Pois felicidade se sente, e quando não se sente é necessário que não se sinta nada até que possa se sentir de novo. E na décima segunda briga que o casal enfrentou, essa a qual fora a única relevante em todo o relacionamento, aquele garoto que agora era um homem decidiu se isolar. Se isolar pra pensar. E pensando abriu uma cerveja, mas não ficou bêbado. Quem dera tivesse ficado, pois cerveja quando não se bebe para embriagar estimula a criatividade. E a criatividade foi tanta que ele acabou criando pra si um motivo pra não voltar mais a seu antigo amor ou à seus filhos. Voltaria a ser aquele rapaz sagaz e observador. E voltou a ser.
Aos poucos a sede de conhecimento retomou o seu dia-a-dia. Cada pessoa, cada lojista, cada gesto, tudo ele via e relatava. Criou em sua mente enciclopédias de suas deduções. Tudo era fascinante, e fascinante era nada. E mentalmente se vangloriava por ter jogado fora sua humanidade comum em prol de sua necessidade de criar concepções pra tudo e pra todos (ou interpretar as concepções de um outro). Havia transcendido o resto, e o resto eram as pessoas felizes e infelizes, mas que diferente dele sentiam algo ou outra coisa.
Mas havia uma coisa que não conseguia deduzir. Talvez tivera deduzido a crise de saudades que sentia da esposa pela quantidade de ocitocina que fica na corrente sanguinea depois de uma experiência sociológica tão forte como o casamento. Mas correntes sanguineas podem ser alteradas, e resolveu alterar a sua com cigarros.
Fumar para ele era uma dor menor do que se sentir humano (se é que era capaz de sentir alguma dor). E com um amontoado de tabaco no bolso continuou sua jornada em busca do conhecimento que a vida lhe trazia cheia de humildade.
Mas transcender um humano não significa viver mais. Talvez significasse viver menos, e apesar de não ser mais gente como a gente, ainda tinha dentro de si um pulmão e dentro de um pulmão um carcinoma. Estava morrendo e não sabia se desesperar com isso.
Não culpou o cigarro. Pois dentro de todas as suas teorias não havia uma memória ou informação que o dissesse se era pior ter câncer ou um amar alguém. E apesar do diagnóstico continuou com seu vício, afinal de contas parar agora seria desenfrear em si todo aquele sentimento retido pela nicotina.
Seriam alguns meses a mais para terminar sua obra que nunca seria publicada, pois era complexa demais pra mentes que não eram como a dele. Mentes de meros homo sapiens.
Após algumas caminhadas de poucas novidades, devido ao fato de ter que revezar os olhares ativos e a tosse, caiu em um desmaio do alto de uma cadeira daquelas altas de mini lanchonetes de rua. Foi levado ao hospital e sua família avisada às pressas.
Família difícil de se achar depois de 5 anos de êxodo em que o pobre cancerígeno e supra humano viveu.
Eis que chegou a esposa, os filhos e um outro cara. Cabelos grisalhos, queixo grande e uma camisa que exalava a dinheiro. Sua esposa havia se casado. Não sabia o que pensar. Na verdade pensava, mas não sabia. Deduzia daquele homem o que ele devia ser, afinal de contas, ninguém era diferente. Na certa devia ser um empresário, pois só empresários tinham olhares que se proclamavam com tamanha superioridade. Mas o intrigava ainda mais os olhares da esposa e dos filhos. Nunca havia os visto chorar. Em 10 anos de casamento, talvez tivesse ignorado cada lágrima. Afinal era feliz, e os felizes não consideram as lágrimas, essa era sua lógica. Sua concepção de felicidade não incluía o sofrimento. Percebeu que mesmo nos momentos em que fora normal, não se permitia uma ambiguidade de sentidos.
A esposa se jogou aos pés da cama segurou sua mão, e se entristeceu um pouco mais. Os filhos um pouco mais crescidos também tinham os olhos rasos d'água. O atual marido de sua esposa se mantinha distante tentando projetar em si a sensação de ser um homem de respeito com os moribundos.
O pé-na-cova não disse nada. Não sabia o que dizer ou estava ocupado demais prestando atenção em cada gesto, cada dedo que se mexia em um espasmo, cada piscadela, uma sobrancelha que se levantasse e se encheria de um significado.
Mas sua concentração foi quebrada quando ao lado de sua cama apitou um aparelho e seus olhos se fecharam contra sua vontade. Interromperam sua busca de uma verdade. Ou talvez a verdade daquele momento fosse que ele simplesmente como qualquer outro humano estava morrendo. Não era diferente de outros casos. Era uma massa rosada que ficaria cinzenta tanto em sua cabeça como fora na cabeça de qualquer outro gênio.
Não havia se despedido de sua família. Talvez tivesse se despedido em seus relatórios com um "PS" no rodapé. Mas na presença deles não disse. E morreu sem saber se viveu. Afinal o que é a vida, uma busca de conhecimento ou uma entrega a sensações? Nunca soube dizer. Mas após ter perdido o seu corpo e seus órgãos pararem, sua vista partir, seus pés gelarem, num ataque rápido de epifania lhe veio a certeza de que nunca fora feliz e sua enciclopédia se dissipou e tudo se escureceu.
Não foi uma morte grandiosa. Nenhuma morte é, e talvez nenhuma existência seja.
Mas como em toda morte havia algo pelo que se arrepender. Pois existimos de forma limitada, e o limite é a parede que o separava de um todo que sempre quis.
O que me resta é pensar, será que ele era mesmo diferente? 
Talvez tão diferente quanto qualquer um possa ser ou seja.

Ele era diferente, mas não era tão diferente assim.

Um comentário:

  1. gostei do conto, uma auto narrativa, critica de si mesmo numa projeção de futuro! Parabéns, faz um belo jogo de palavras, dando um dinamismo interessante.

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